Crescimento da Celulose Redesenha o Campo e Ameaça Segurança Alimentar no Leste de MS

Bulhõesdigital
A pujança econômica trazida pela indústria da celulose em Mato Grosso do Sul tem reconfigurado silenciosamente a vida no campo — e não para melhor. Enquanto a monocultura do eucalipto avança em ritmo acelerado sobre o território do leste do Estado, famílias de pequenos produtores rurais se veem em meio a um cenário de transição forçada, onde a agricultura familiar perde espaço e segurança alimentar se torna um desafio crescente.
Municípios como Ribas do Rio Pardo, Três Lagoas, Brasilândia, Santa Rita do Pardo, Inocência, Bataguassu e Selvíria concentram hoje vastas plantações de eucalipto, totalizando 1,69 milhão de hectares — o que representa 93% do total cultivado em todo o Estado. Em contraste, os assentamentos rurais somam pouco mais de 47 mil hectares, onde agricultores tentam manter viva a produção de alimentos.
A mudança de paisagem não é apenas visual. O impacto socioeconômico é profundo: áreas antes voltadas à subsistência agora convivem com a promessa de salários mais atrativos nas fábricas e florestas industriais, provocando uma migração silenciosa de trabalhadores rurais para a folha de pagamento das gigantes da celulose. Estimativas locais indicam que cerca de 40% das famílias assentadas já exercem algum tipo de atividade no setor. Fora do período de colheita, esse número cai para 15% a 20%.
“A gente tenta resistir. A proposta é não abandonar a agricultura familiar, mas é difícil competir”, relata Sebastião Landim, agricultor e líder da associação Amigos em Ação, que representa produtores dos assentamentos Mutum e Avaré, em Ribas do Rio Pardo. Segundo ele, a relação com as empresas é, em geral, cordial, e há até ações conjuntas para minimizar danos. “Não é uma briga contra o progresso. A gente quer coexistir com ele.”
Ainda assim, Landim alerta que a estrutura da região começa a dar sinais de esgotamento. “Antes era mais calmo. Agora vem gente de todo lado. Temos só uma ambulância. Como atende todo mundo?”, questiona.
A maior protagonista desse novo cenário é a Suzano, com cerca de 600 mil hectares de eucaliptos só na região. A empresa tem sido cobrada a participar de soluções coletivas, e já promoveu ações como a redução de agrotóxicos para preservar a produção de mel em projetos locais, além de apoiar corredores ecológicos em áreas de nascente.
Entretanto, os efeitos colaterais do avanço do monocultivo são visíveis. O superintendente regional do Incra, Paulo Roberto da Silva, o Paulo Ponta, afirma que o impacto ambiental é severo, especialmente sobre a fauna e os recursos hídricos. “Tem áreas em Selvíria onde os animais, sem alimento, invadiram os lotes dos assentamentos. Se plantar banana, vem arara, macaco, tudo.”
O reflexo disso também se vê nas rodovias da região, com o aumento de atropelamentos de animais silvestres. “Tem bicho batendo marmita na beira de estrada”, ironiza Valticinez Barbosa Santiago, gestor ambiental de Selvíria, utilizando uma expressão popular para descrever a trágica rotina das espécies que buscam comida fora do seu habitat.
A fauna local, rica em espécies como o lobo-guará, bugios, antas e veados, sofre com a redução de corredores naturais e o desaparecimento das matas. Diante desse cenário, o Incra propõe alternativas sustentáveis, como a criação de cinturões verdes em torno dos assentamentos, capazes de proteger os agricultores e a biodiversidade da região.
Enquanto isso, o leste de Mato Grosso do Sul assiste à transformação do campo — onde o verde do eucalipto avança veloz, mas a produção de alimentos e o modo de vida tradicional lutam para não desaparecer.
Imagem: Divulgação